23 de março de 2018

Sobre Efatá


Resumo dos fatos

Sob a tutela muçulmano dos califas, a relativa paz reinou na Ibéria durante 8 séculos entre os três povos do Livro: judeus, cristãos e muçulmanos.


Durante o reinado de Boabdil, cristãos e judeus se uniram para derrotar o único califado europeu. Derrotados e expulsos da Ibéria - com a força e o dinheiro dos judeus - os muçulmanos fizeram falta ao povo sefardita, que, de imediato, tiveram a cidadania cassada, e, sem lenço e sem documento, tiveram de abandonar a Espanha cristã que ignorou o direito consuetudinário.


O Castelo de Alhambra, em cujas dependências foi assinado o Decreto de Expulsão, foi construído pelos três povos do Livro; arquitetura exemplar, modernidade e superioridade de um povo; contava com água encanada, instalações sanitárias e sistema de abastecimento e irrigação próprios.
Expulsão dos mouros. Decreto de Alhambra assinado, iniciou-se a Diáspora Sefardita. Espalharam-se os judeus pelo mundo. A Turquia, que derrotara os bizantinos, abriu as portas para os sefarditas. O sultão Beyazit II enviara à Espanha o Almirante Kemal Reis para acudir os judeus e conduzi-los a terra otomana.


“O Rei Fernando de Espanha não é sábio como se diz, pois empobrece o seu Reino para enriquecer o nosso”. Teria dito o sultão referindo-se a cultura: conhecimentos médicos, matemáticos, filosóficos, náuticos, linguísticos, a invenção de tecnologia agrícola, a inovação artesanal, comercial e financeira; a tradução de clássicos gregos para o árabe, evitando o desaparecimento. Destaca-se na filosofia para o trabalho do pai do pensamento secular na Europa Ocidental, Averróis (As religiões são criações humanas equivalentes, e por conveniência pessoal e circunstâncias escolhemos uma).


As grandes invenções dessa época saíram do convívio, geralmente pacífico, entre as três grandes religiões monoteístas. E toda essa riqueza, pelos sefarditas, foi levada para a Turquia, que dominou o mundo, consolidando-se como poderoso Império Otomano.

“O povo que estiver conosco, que o Deus deles esteja com eles. Que vivam na nossa terra, cada um debaixo da sua vinha e da sua figueira, com prata e ouro, com riqueza, gado, e que façam comercio”, palavras atribuídas a Mehmed II, governante da Turquia.



No entanto, muitos sefarditas refugiaram-se em ‘Portakal’ e juntaram-se as comunidades judaicas (século VI d.C). Refúgio que durou pouco tempo.
Em 1496, D. Manuel I ordena a expulsão de todos os judeus e muçulmanos de Portugal, dando cumprimento aos termos do contrato de casamento com Isabel de Aragão impostos pelos Reis Católicos de Espanha.

D. Manuel I 
Para evitar o desastre económico espanhol criado pela ‘diáspora’ imposta aos Judeus, o rei ordena a conversão geral, o fechamento das sinagogas, a destruição de todos os livros judaicos, dos cemitérios, o confisco de crianças de catorze anos e a entrega das mesmas a famílias cristãs.




A conversão obrigatória foi um fracasso, pois os judeus continuavam praticando o judaísmo às escondidas, pois submeteram-se ao cristianismo por interesses comerciais, e não religiosos. Como exemplo da tragicidade da conversão forçada, tem-se o Massacre de Lisboa.


Entre os tais cristãos-novos que sobreviveram, muitos vieram desbravar o Brasil e o nosso querido Nordeste.

19 de agosto de 2017

Parassé




O presidente nasceu aqui, mora depois da Ponte de Arco e, embora em Brasília, sempre se escuta a notícia de que “o homem está na cidade”.
Sendo assim, nossa Tiete deveria ser referência nacional nos serviços públicos. Ledo engano. Aqui acontece cada parassé que desbanca até o famigerado coronelismo nordestino. E sabe o que acontece em matéria de denúncia e ou responsabilização? Não acontece nada! Tudo é camuflado ou maquiado e colocado sob o tapete do politicamente correto. Até porque todos têm medo das represálias, que funcionam tão bem quanto o fogueirão da inquisição que há tão pouco “assava” gente viva no meio da praça!
Vou esclarecer o quero dizer em dois exemplos trágicos, mas que acontecem diante dos cidadãos, das instituições públicas e até da Snta Igreja. O primeiro fato é referente à Samae; o segundo, à Elektro.
A Samae apresenta um serviço nefasto capaz de provocar vômito. Lesa a população na cara de pau, cobrando 3 ou 4 vezes além do que é devido. Quem perde o comprovante de pagamento paga duas vezes, as filas são enormes, diárias e constantes. As pessoas aviltadas são obrigadas a deixar os afazeres e se perfilarem na porta da autarquia até se explicarem e se livrarem do acharque tosco e recorrente. Segundo murmúrios, que saem da boca de todos, o sistema operacional foi destruído há quase 2 anos. E sabe o que se fazem para arrumar? NADA. Sabe quem é responsabilizado? NINGUÉM.
A Elektro parece também ter entrando no esquema de QUANTO PIOR MELHOR para faturar. O que rende mais do que a vigarice neste País? De que maneira a Elektro cobra (e recebe?) a dívida estratosférica da Samae? Só apra saber mesmo.
Pois bem... A Elektro não enviou aos consumidores de Tietê, como sempre faz, a conta de luz do mês de maio para ser paga em bancos e lotéricas. O consumidor mais atento foi à sede da Elektro, pegou a segunda via e pagou. Quem passou despercebido, como eu, foi surpreendido com protestos em cartório! Quem não quer ficar com o nome sujo na praça terá de pagar juros, multas e as custas do protesto. Cá pra nós: o fato da Samae dever até a “virgindade” a Elektro credenciaria esta a aplicar um golpe de mestre de tal envergadura na população tieteense? 
Aliás às distribuidoras de energia, registre-se, têm se metido em escândalos que rubram até os mais cínicos: cobram das pessoas o que as pessoas não devem, segundo a mídia!
Neste conluio doido (ou não) entre empresas e instituições a Nação vai de ladeira a baixo. A mídia nacional informa que 40% da população economicamente ativa está catalogada como caloteira. E todo brasileiro sabe que isso significa estar em prisão domiciliar, ser ameaçado de morte na rua e ter de viver recluso para não ser atropelado pelos “automóveis” da vida. Quem vai mosquear num país que mata mais do que todas as guerras atuais juntas, tanto em sentido econômico quanto em sentido literal? Ainda mais se tiver uma tornozeleira eletrônica no bolso, alias, no tornozelo. Está morto em pé, só falta cair, ser enterrado na vala dos indigentes e poluir, ainda mais, o rio Tietê.
O cidadão comum não tem a quem recorrer, ou existe algum vereador que requeira algo além do sexo dos anjos? Entretanto, o trabalhador pode escolher uma entre duas opções: virar bandido, ou virar lixo? O que você vai escolher, se é que ainda não escolheu?... 

22 de junho de 2017

Voz Branca







À beira do rio Salgado, sobre o tronco da oiticica frondosa, eu mesmo construí meu canto. Cortei a catingueira, fiz pilares, das varas de marmeleiro fiz o lastre atando umas às outras com tiras de mutambeira. Com os pés enormes, de voz de branco, amassei o barro até ficar visguento e, aos poucos, numa velha arupemba, conduzi-o, até concluir inteiro o piso lisinho e amarelado. Teci as paredes com cipós e dei uma demão de barro temperado com cinza da fogueira de São João. De pedaços de tábuas rústicas e ordinárias, improvisei uma janela e uma portinhola de taramelas e ferrolho que me garantiam a privacidade naquele mundinho minúsculo e suspenso do chão.
Ali, enfunado, eu ficava horas. Pela manhã, depois de soltar o gado na manga, as cabras e as ovelhas no pasto, abastecer de água potável a casa do patrão, o bebedouro das vacas de leite... Desarreava o jumento Virgulino - que tanto me ajudava, principalmente no abastecimento de água - e dava-lhe o pasto. Cumpridas tais obrigações, ia eu às devoções. Pegava a espingarda de dois canos e me socava dentro da Casa Alta – assim denominaram meu esconderijo – a espera de veados galheiro ou emas que viessem beber água – na verdade, quase lama - nas poças de água suja que ainda restavam do Rio Salgado.
E sair de dentro da Casa Alta eu só saía quando ouvia o grito do padrão – muitas vezes furioso - avisando de apartar bezerros ou pastorear as cabras e ovelhas que furavam as cercas e invadiam o milharal ou a roça do vizinho, ambas, muitas vezes, regadas a pingos de água retirados do resto do rio em baldes ou latas vazias de querosene. A plantação, como a reclamar água, pegava um aspecto esquisito e macabro. Eu murmurava de mim para mim:
- Parece que se alimenta de suor humano, o suor dos miseráveis que regam-na à mão, em gotímetro…
Antes de descobrir o prazer do vicio solitário, eu armava arapucas e pegava três-potes e codornizes, pescava várias espécies na ribança com o landuá e plantava na vazante: cebolinha, coentro, uma e outra coisas. Minha patroa adorava!
Mas esse negócio que o povo chama de punheta, acabou comigo, apesar de ser muito envolvente e prazeroso. O Major, nosso vizinho, quando vinha me profanar – bater forte com o pênis na minha face - dizia que eu estava no fim da voz branca, período em que se inicia a grande diferença entre macho e fêmea. À minha frente estava a tal semenaca: interesse pelo sexo, mesmo que fosse o dele; nasceriam pêlos no peito, pernas, púbis e barba. A não ser que eu tivesse muito sangue de índio. Os pés cresceriam, as mãos ficariam enormes e eu me estabanaria até acostumar o novo corpo com o espaço; o pinto cresceria, os testículos desceriam, eu sentiria muita fome e comeria até o barro das paredes; engrossaria a voz, o cachaço e ficaria atormentado por não saber lidar com tanto estranheza. Mas ele, o Major amigo, estava de olho em mim a me auxiliar na transição impreterível de não ser nada: nem mais menino e ainda longe de ser homem.
Certa vez, sem querer, deparei-me com os patrões se amando, pela aurora, nas águas mornas do Salgado sazonal. De tão inesperado, nem pude fugir. A implacidez estrebuchou-se-me inteiro por dentro, e me petrificou. O jeito foi me fincar atrás da moita pequena, à distância mínima, e adiar o meu banho de todas as manhãs; já eles raro desciam ao rio assim tão cedo. Que situação... Eu fechava os olhos! Eu arregalava os olhos!
Um calor estranho a me queimar a cara, a me percorrer o corpo e me obrigar, mesmo correndo todos os riscos, a manter todos os sentidos ligados, esmiuçando a cena avassaladora! Era tão diferente dos animais! Bois e vacas, bodes e cabras, éguas e cavalos... Eu nem batia a biela, mas meus patrões!... Que loucura!
A puerilidade, daí em diante, tomou outro rumo: eles, meus donos, não me saíam do juízo! Eu afobado cumpria as obrigações e corria à Casa Alta. Os veados galheiros e emas bailavam nas minhas fuças! E era o casal, seu Arlindo e Dona Rute, que eu via e ouvia inteiros em toda parte. Dona Rute toda bonitona, cheia de curvas, exibia-se como uma serpente macia, lenta, embusteira e lasciva. Seu Arlindo recebia-a, em pêlo, a gabar-se do pedúnculo afoito, rijo, a ostentar um bálano rosado, enorme, como fosse a Esfera de Armilar.
Parecia que as falas entrecortadas – passei a espioná-los pelas frestas - e as imagens que eu via quando o candeeiro permanecia aceso, ficavam vivos dentro de mim. Era eu botar os pés na Casa Alta e ver e ouvir tudo como se fosse a mais perfeita repetição daquilo que eu assistia pelo buraco da fechadura, frestas e um buraco no telhado de onde se via com perfeição durante o dia!
Ela, dona Rute, a Lindona - assim seu Arlindo a chamava naquelas horas - queria ser mãe a qualquer custo. Ele, o Lindão, como que despreocupado, desempenhava seu papel sem resignar-se.
Falavam sobre diversas coisas, depois que desligavam o rádio e se trancavam na alcova. Uma noite, falavam sobre mim. O candeeiro aceso, ela inteiramente nua, recostada a uma pilha de travesseiros sobre a cama de colchão de mola, lençóis alvíssimos de algodão, um livro nas mãos e entre as pernas a cabeça meio grisalha de seu Arlindo, também em trajes de Adão, meio que de joelhos, ocupadíssimo entre fazeres e falares que nem convém citar de tão picantes. Um mundo estranho e novo a se me abrir:
- ... pelo menos aprender a assinar o nome, Lindona!... Gostosa!
- Pra que botar um cabrinha sarará daquele na escola? Vai pensar que pode ser doutor. Perda de tempo e dinheiro. Ele fica no canto dele. A gente mesmo lhe ensina o abc e umas continhas de somar e diminuir. Quando botar corpo de homem, arrumo uma negrinha com o Major, e mando o casal morar no Serrote pra cuidar dos animais e daquelas terras ignotas. Pretendo aumentar a criação, fazer umas brocas, plantar milho que dá forragem.
- Tudo o que você quiser, minha Lindona gostosa... Eu quero você todinha...
Eu não gostava da maneira como dona Rute falava sobre mim, sentia-me um cão sarnento. Leão, o rei da flatulência, eternamente cheio de pulga, carrapatos e sarna - nem ele era tão esculachado! Muita vez me dava ódio de dona Rute... Ainda bem que eu mergulhava no Salgado e passava! Ela sentia prazer em negar-me como semelhante ou mesmo como criado da casa. Deveria nem ter me comprado a minha mãe. Bem feito que passasse a vida tentando e não embuchasse! O que custava me criar como filho ou mesmo como gente? Arrumar cama limpinha e cheirosa, acesso ao rádio, roupas decentes, chinelos e sapatos novos e me adotar? Não custava nada! E era ela quem não queria; desistira de me criar só porque eu sou sarará, nem branco nem preto... O patrão não se importava tanto. Inclusive ele nunca se oponha a ela em nada. Em nada! Devia me defender, dizer que eu não tinha culpa de ser como sou, de não ter pai... Alías, pai eu tenho. Só que não se sabe quem é, mas existe grande desconfiança. É que minha mãe era mulher dama, mulher de cabaré... Dormia com muitos homens diferentes todas as noites. Dormiu até com o amásio da cafetina, e botou tudo a perder: com a carabina nas fuças, foi expulsa do bordel! Tanto homem e minha mãe foi se interessar logo por quem? Para não morrer, agarrou-me pelo braço e saiu me arrastando. Fugiu com um grupo de retirantes. Passando por aqui, na fazenda Icozeiro, me vendeu por uns vinténs, umas e outras besteirinhas. Eu fiquei, pois era o objeto vendido; e ela se foi com o dinheiro sabe lá Deus pra onde!
Então, capaz que eu fosse filho de militar; alias, militar, militar, assim com o Major, não! Mas era quase polícia, era guarda da Prefeitura e autorizado pelo Dr. Gato! E era valente e respeitado. Não portava revólver, mas andava de cassetete e outras tralhas de autoridade! Tinha permissão para bater em putas, como minha mãe; retirantes, cachaceiros e pederastas. Eu morria de alegria quando a gente se encontrava! Ele me dava algum tostão para eu comprar doce ou dindin. Com fé em Deus ele há de ser meu pai... Essas coisas de paternidade a gente sente no espírito; eu queria ser filho dele, ele queria ser meu pai; pronto, tava tudo certo. De quando em quando ele prometia me levar para morar na casa dele.
Um dia morri de orgulho de meu pai soldado Santão - ai de quem negasse a autoridade dele! Ele batia firme num retirante e cobrava a patente:
- Me chama de soldado Santão, seu retirante dos infernos!
Quando fugimos, eu e minha mãe... Quando ela resolveu se livrar de mim e me vender... Eu era muito pequeno, mais me lembro bem: o saco encardido conduzido às costas, num ímpeto brusco, foi jogado ao chão. Minha mãe foi desembrulhando, desatando o nó; com as duas mãos, mantinha-o aberto, enquanto recebia o que lhe era de direito. Uns quartilhos de farinha, umas rapaduras, uma quartinha com tampa, um dinheiro em cédula, e umas moedas barulhentas - era tudo o que eu valia!
Depois dona Rute presenteou-a com objetos que não serviam mais: um pente grande azul banguelo, um par de chinelos roído no calcanhar, uns trapos velhos e sei lá mais o quê.
Quando, por fim, me dei conta da situação, meti-me no desespero, mas não teve jeito: seu Arlindo me arrancava dos braços do retirante esquelético que me conduzia! Não gosto nem de lembrar o momento em que deram as costas e se foram lentos em passos lentos, passo de retirante que, por não saber aonde vai, caminha sem vontade. Largaram-me ali, no terreiro, nos braços de um estranho, como se eu fosse um fardo inútil, pesado e descartável. Cruz credo! Não posso nem lembrar... Até hoje, ainda não vivi terror igual, mas sobrevivi.
No começo, quando dona Rute desejava me adotar, a situação era até boa. Tinha tudo que precisava, e a relação patrão/criado não era das piores. Dona Rute é que era instável. Quando nos cascos, meu Deus, era um terror. Eu nem ligava muito para o que ela fazia ou falava; nem chorei quando lhe quebrei o espelho gigante e ela me aplicou tabefes e, em seguida, no calor da ira, uma surra de cipó de marmeleiro! Bateu bateu, cansou, saciou-se e parou. Apenas lancei-lhe olhos súplices, e, quando ela soltou um estalido de resignação e deu uma rabiçaca, cobri-lhe as costas (inundei-lhe a alma) com olhares enfarados e agouros terríveis.  Sobressaltei-me e mergulhei em profunda vergonha com o grito do Seu Arlindo:
- Veja se daqui pra diante presta mais atenção nas coisas. Parece que anda bebendo cana.
Pela primeira vez na vida eu sentia a dor da vergonha, uma dor profunda. Eu quase um homem – uns pêlos pingados irrompiam entre o pênis e o umbigo - e apanhando de cipó, e ainda pior: cipó manuseado por uma mulher! Felizmente
Seu Arlindo não esquentava a cabeça, estava sempre de bem com a vida principalmente se estava lambendo a dona Rute, amassando-a e pinoteando em cima dela feito jumento inteiro em várzea de campos gerais. Sem aprofundar muito, pode-se dizer que é um espírito medíocre que tenta se redimir em ações frívolas. Não recolhia o sorriso fácil do rosto, nem as palavras simplórias da boca, desde que não lhe escasseasse o sexo de todo dia. Jamais foi abertamente solidário com a minha dor física ou moral. Achava normal, sobretudo se na presença de Dona Rute, eu apanhar de cipó e ser esmurrado por ela:
- Todo cuidado é pouco com as coisas de Rute.
Cheirinho de chuva, alta manhã, e fui à Casa Alta. Enfiei a mão instintivamente dentro da calça de suspensório, Dona Rute e Seu Arlindo a me causar repelões nos músculos. Botei-me num ritual novo por que pensar, eu não pensava em nada, a não ser fosse a dicotomia do abridor e seguidor de caminhos: uns apenas seguem caminhos, outros abrem caminhos.
Saquei o pinto e... Um pintinho de nada, duas, três polegadas no máximo... Merrequinha que eu pegava, acariciava, amassava, puxava, sovava... E não me cansava de repetir. Cada vez mais excruciava, alucinava... Devastador! E se explodisse? Prossegui até que explodiu!
– Meu Deus, que delícia... Até me mijei todo! - disse de mim para mim.
Quando olhei pela janelinha, uma família de veados galheiros me insultava, ali, na minha frente, no areão prateado do Salgado. Peguei a espingarda de dois canos, segurei firme e apertei o gatilho. Um veado grande ficou no chão e um filhote fugiu feito um raio, mas capengando. Soltei e açulei Leão, que em poucos minutos voltou com o veadinho entre os dentes. Gritei Seu Arlindo para que me ajudasse na condução do galheiro enorme, morto, além de minha força infante.
Veio correndo e atrás dele um sujeito servil, espalhafatoso, que se fazia mais íntimo dos patrões do que realmente era. Eu ali morava havia anos e o desconhecia completamente. Sujeito estranho, meio abaitolado... Não me desceu bem. Já na primeira olhada que a ele lancei, senti-o como a invadir-me. Botou os olhos fundos dentro dos meus, um meio sorriso torto na cara tosca, mostrou a porcaria de um dente de ouro e perguntou sibilante, como a me detrair:
- Quem é o cabrocha, compadre Arlindo?
- É Nuné, um menino que comprei de Dada Dadeira... Dizem que é filho do guardinha Santão.
- Isso é nome de gente! - exclamou e encheu o entorno com uma risadona de deboche.
Morri de vontade de atropelar a conversa sinistra e perguntar quem era o bode velho, mas o enfrentamento sempre ficava só na intenção. Nunca vi uma cara humana tão parecida com a de um pai de chiqueiro!
Não demorou muito para eu descobrir do que se tratava. Seu Arlindo contratava o sujeito, Decão, para fazer uma broca, derrubar a mata, fazer roças e pastagem para os animais e, também, para pegar dinheiro no Banco do Brasil, incentivo do Governo Militar. Tudo acertado, e iniciar-se-ia a derrubada logo após o São Pedro. Não viria chuva pelos próximos meses, e logo os ramos verdes virariam folhas secas, boa para a grande queima. Até os tocos derreteriam, e o trabalho de arrancar os troncos com chibanca se reduziria a quase nada. 
O cervo àquela altura da conversa, que ocorria como se eu não existisse, já inteiro descourado! Decão a mostrar o ouro da boca podre:
- Se fosse bode era só fazer uma buchada!
Sangue e vísceras por toda parte. Quem ia fazer buchada de veado? O veadinho pequeno jazia dentro do bucho grande de Leão, que observava tudo de um canto do terreiro, debaixo da sombra da catingueira grande. Eu quieto a receber os esgares de Decão, que de quando em vez, virava-me a cara bajuladora.
Quando na presença de gente, eu fazia o que me pediam; como nada me pediam, atinha-me a ouvir e avaliar os planos do patrão. Este falava alto, distribuía ordens à esposa, ao fubano do Decão e nada a mim. Talvez para anular meus merecimentos diante do feito, pois agia como se ele tivesse caçado:
- Apesar da seca, ainda tem muita caça nas minhas terras!
Pronta a combinação sobre a broca entre o patrão e o cabra Decão. Seu Arlindo passou a faca partindo o veado ao meio. Uma banda entregou a Dona Rute e a outra depositou dentro de um bornal de palha e presenteou Decão! Este me buscou com o canto dos olhos lá debaixo do poleiro das galinhas, onde eu colhia uma embira, e soltou o sorriso emblemático que foi morrer no canto da boca torta, abaixo do bigode preto, espesso e mal aparado. Sempre me mostrava o tal sorriso de modo sorrateiro, escondido de seu Arlindo e dona Rute.
- Então o Compadre e a Comadre compraram o filho de Santão?…
Decão ria solto, alto e soltava um sibilo como se fosse um trejeito involuntário, um sestro abemolado na voz, que assustava. Não fui com a cara de Decão. Nem escondi a alegria, quando chegou a hora dele partir.
Agradeceu o presente, atando-o à sela coberta por um coxim multicolor, disse saudações, montou no pangaré, que levantou poeira rala - nada que lembrasse o alazão de Seu Arlindo. Nem preciso dizer que fui ignorado por Decão; se me olhou de esguelha, não percebi.
Passaram-se uns dias. Tarefas concluídas. Tardinha. Seu Arlindo e dona Rute à missa. Eu inteiro absorto no ritual “estica e puxa”, na Casa Alta. Esperava a noitinha de domingo chegar e ir me lascar no rio, jantar e cair na rede. O quarto onde eu dormia, contíguo ao do casal, que quase me adotara, parecia uma caixa acústica dos sons produzidos na casa! O barulho da cama de colchão de mola, meu Deus!...  Eu não dormia direito.
Dei um breve descanso à timba, como se diz por aí, e joguei os lânguidos e míopes olhos na estrada. Foi um susto só: saíam detrás da Pedra Azul, na curvinha, um pouquinho antes da descida, cinco homens, dez homens, dezenas de homens mulambetos, trazendo às costas, em trouxas encardidas, seus poucos pertences: roupas, a rede de dormir e ferramentas: machados, picaretas, foices, rastelos, facões, lavancas e tantos outros cacarecos. “Gentalha retirante!” – pensei alto, imitando Dona Rute nos seus dias de nervo.
À frente da multidão andante, que lembrava um bando de cangaceiros dos cordéis, o Decão no pangaré cardão. Ia começar o desmatamento da Icozeira!
- Cadê teu patrão, Nuné? – mostrou o dente de ouro e amassou o sexo como se desejasse destacar aquela parte do corpão de chimpanzé.
-Tá pra cidade, na missa...
-Tu tá branco feito algodão... Tava sovano a trouxa?! – disse Decão arreganhando a boca, fazendo o bando (parecia uns bandoleiros, cangaceiros) se rir de mim.
- Não senhor... Faço essas coisas não...
- Faz não, né?!... Tu é sonso, hen?... Teu pai já deixou a mania de ser polícia?
- Sei não senhor...
- Teu pai é um safado. Só presta pra bater em puta, nos bêbados arruaceiros, nos coitados dos retirantes e estuprar viadinhos que nem tu...
- Sou isso não, senhor...
- Nun é não né?… Eu bebi umas cachaça lá no bordel onde tu nasceu... Ele veio então fazer graça comigo... Saimo na mão e eu acabei perdendo... Levei uma surra... Aproveitou de mim... Eu tinha bebido demais... Mas a gente vai se falano, viu!... Avise pro Seu Arlindo que eu já tô arranchado na Casa Velho...
- Aviso.
E os desdentados, despenteados, quase vivos, quase mortos emendaram no deboche... Fiquei parado, com a cara no chão, e a cáfila (sem ofensa aos camelos) passou puxada por Decão. Sujeitinho tinhoso! Vai acabar levando outra surra de meu pai Santão. Se não, faço melhor, peço ao Major que mande dar um tiro na moleira de Decão. Ele que não me deixe em paz!... O Major é valente, trabalhou na polícia paulista, é temido e mata só pra ver o tombo do cabra, e é meu amigo.
Feito estatua de cera, vi Decão e sua corriola atravessarem o rio e se alojarem na Casa Velha, até então usada como depósito de todos as tralhas, e, agora, trastes! Em tempo não muito distante dona Rute queria que eu ali morasse, mas Seu Arlindo achou melhor não, preferiu que eu continuasse morando com eles, na casa rica, rede limpa, lençol terso, rádio e comida boa.
- A casa é tão grande e tão vazia.
E eu ajudava bastante: pegar uma água na cozinha, quando eles descansavam na rede grande, debaixo de um dos alpendres; atiçar o fogão de lenha, preparar um escalda-pés, escolher um côco no coqueiro, colher e assar um milho fresquinho, fazer um mandado qualquer. Foi o que me salvou; por pouco escapei de ir parar na casa de cacarecos. Ademais eu morria de medo de lobisomem, saci, caipora, alma penada... Eu teria morrido de medo!
Apesar da desmata ter começado pelos confins da Icozeiro, lá no Serrote, a gritaria das ferramentas toscas longinquamente se ia aproximando a cada dia; sorrateira, se aproximava.
Mas antes do bate-bate ensurdecedor imperar, fui brutal surpreendido e descoberto dentro da Casa Alta. A taramela voou longe; um soco na portinhola, e o palavreado atrevido e arrastado de Decão:
- O que tu ta fazeno aí, moleque safado?!
Não tive tempo nem de fazer cara de santo ou um olhar inocente que tentasse negar em silêncio, já que falar era impossível. Eu mal conseguia acreditar em tamanha invasão; tremelicante, perplexo, e pinto duro – agora já bem avantajado - e espumante na mão!
Um fuleiro invasivo dentro do meu esconderijo, depois de ter arrombado a porta! Queria eu ter a coragem de um retirantizinho do meu tamanho que, armando de punhal, enfrentou um homem feito. Mas tal petulância ainda não era tudo: Decão arrancou de dentro da calça o pênis fedido, repugnante, enorme, cabeçudo, meio encapado, cheio de esmegma e disse:
- Pega, bate e balança gostoso ou eu conto tudo pro compadre Arlindo. Vai depressa, viadim fuleiro!
- Gosto disso não, Decão – disse eu como última tentativa.
- Eu sabia que tu não prestava, chibungo safado... Conheço bosta só em olhar, de longe... Vai! Pega, coloca na boca!
Parecia que o mundo ia acabar. Desviei matreiramente e não entrei em casa. Uma gritaria, uma baixaria como eu nunca tinha visto! Escondi-me atrás do chiqueiro de engodar porcos, e, esgueirava-me à cena: dona Rute furiosa chorava e dizia que Seu Arlindo não a merecia, que ela ia embora e ia separar-se dele para sempre. Onde já viu desconfiar dela com o Major? Ela seria então uma mulher capaz de trair?! Ela, mulher direita, honesta, ser capaz de trair na concepção do próprio marido que ela amava tanto. Não, tal humilhação, tão grotesca desconfiança, ela não aceitaria.
Seu Arlindo, aos berros, selando o cavalo, dizia que ela, traidora, fosse aos quintos dos infernos! Montou no alazão e saiu em disparada, cavalo às esporas, deixando atrás de si densa nuvem de poeira. Nunca tinha visto Seu Arlindo daquele jeito! Vermelho de raiva, pisando firme, como se rompesse um pavimento de ferro a cada passo e em seguida cutucando o alazão e abrindo o poeirão! Furioso.
Que estaria acontecendo, meu Deus?! Ela juntou malas, sacolas e baús e enchia-os de coisas e roupas. Vestiu-se, abriu a sombrinha, leque à mão e botou-se na estrada. Pouco ligava para os “não vá, dona Rute” que eu tartamudeava. Soluçava, caminhava, descaminhava, tresvariada a me dar ordens:
-Vá à casa do Major e diga a ele que mande alguém pegar minhas coisas e levar tudo à casa de mamãe – quase cuspia fogo - e mande o teu protetor pagar o frete! – quando ela vociferava esse temo é porque a coisa estava mesmo complicada.
Fui. Ordens recebidas, ordens cumpridas. Ainda mais de Dona Rute! Um capanga do Major encheu o carro e saiu fazendo poeira fina na estrada caatingueira.
Mais tarde, com a noitinha, Seu Arlindo se aproximou, deu um milhão de ordens e o cavalo para eu retirar os arreios, banhar e soltar no pasto. Não fez janta, dormiu no alpendre; passou a viver do próprio veneno, como serpente. Já bem alta noite, fiz-lhe um café e ele começou com macaxeira cozida.
Eu me virava como podia. Quase sempre filava a bóia no acampamento de Decão. Uns e outros me ensinavam coisas de saber, já que não tinha mais lições com a Dona Rute que, mesmo severa, ensina com maestria e prazer.
O matagal inteiro no chão! Tudo reduzido a uma imensa coivara de toras, gravetos e folhas a secar rápido sob o sol do verão sertanejo. Seu Arlindo definhava a olhos nus, dona Rute também, na casa dos pais. Um homem esquisito, que aparecia de quando em quando; trancavam-se os dois ou saiam sem rumo a sondar coisa nenhuma; o esquisito recebia dinheiro e ordem de Seu Arlindo:
- Se pegar juntos, apague os dois! Tem testado o parabelo?
- Sim, sempre preparado para a paz – riu-se e falou coisas estranhas – ‘se queres a paz, prepara-te para a guerra’.
Eu tinha certeza que o Seu Arlindo o contratara para matar o Major e Dona Rute, caso fossem flagrados relaxação.
Fora isso, tudo corria dentro da normalidade. Decão me achava em qualquer esconderijo que eu me metesse e me fazia de ‘mulherzinha’ dele. Mas logo descobri que ele não me atacava entre os cassacos, muito menos se eu estivesse acompanhado de Seu Arlindo. Tornei-me o ser mais sociável do mundo: ou eu estava entre os peões tocando tarol e cantando ‘para lavar a roupa’, ou estava grudado no calcanhar de Seu Arlindo. Muita vez eu encarava, insultava ou ameaçava denunciar Decão, cabrão enxerido... Onde já viu comer ‘os outros’ na marra? Ele que se metesse! Apesar de encará-lo, eu não tinha coragem. Mas Decão não sabia de minha covardia, ou saberia?
As festas de fim de ano se aproximavam, e a hora da grande queimada também. Feito soim amalucado, eu entre Seu Arlindo e Dona Rute. A esta eu dizia ‘volta pra casa, dona Rute, se não Seu Arlindo vai morrer de tristeza’... E ouvia um ‘ele que morra’. Mas recado desaforado, eu não transmitia. Para Seu Arlindo eu dizia um ‘vai lá pedir perdão a ela, Seu Arlindo. Onde já se viu duvidar da honestidade de dona Rute?... O senhor foi o culpado de tudo'... E ouvia um ‘tu não sabe de nada, cala a boca e cai fora... Ela que volte com as próprias pernas. Não soube ir? Sabe voltar, se quiser’. Recado orgulhoso eu não levava. E ia levando a vida de cupido.
Os preparativos chegavam ao fim e a grande queimada ia acontecer brevemente. Todos os aceiros limpos e varridos, decididos os pontos e as coivaras estratégicos, achas com estopa na ponta a ser encharcadas em querosene e acesas... E, então, transportadas pelos cassacos que, numa operação rápida e simultânea, ateariam fogo em quase toda a Icozeiro desmatada. Os rebanhos já protegidos no Jati, sítio do Major pivô da briga de Seu Arlindo e Dona Rute.
O militar já de vetustez do lobo, mas não era de se jogar fora: inteiro, bonitão, aposentaria gorda e muito prestígio. Mesmo assim, Seu Arlindo só podia ter surtado, ou teria flagrado alguma travessura? Certamente não sabia da história inteira, nem tinha vista o que eu vi certa vez.
Dia de reunião dos toscos. Dezenas de homens no terreiro pilheriando sobre acertos e desacertos da grande queimada. Do nada, quando desviava a cara das mugangas de Decão, vi uma sombrinha apontando lá na curvinha da Pedra Azul. Não, não podia ser! Podia sim! Entrei numa felicidade doida. Gritei e saí em disparada:
- Seu Arlindo... Seu Arlindo... Corre! Corre, Seu Arlindo, vamos encontrar Dona Rute. Ela tá vindo, tá voltando, Seu Arlindo... – e ele me ia seguindo, de mãos espalmadas, meio levantadas, inocente, puro, como quem fosse se encontrar com Deus!
Fiz de conta que não percebia o tolaz na face de dona Rute. Fui logo lhe tomando a bolsa, a sombrinha e botando os dois frente a frente. Desci e subi algumas ladeirinhas, parei e olhei para trás: os dois já estavam agarrados, se beijando no meio da ladeira grande! Fiquei ainda mais feliz. Disparei a correr e num segundo cheguei em casa. Tive uma atitude de enfretamento ante o gaiato Decão:
- Vai embora, Decão! E leve seus cassacos, capangas ou sei lá o quê! Vamos! Sumam daqui, sub-raça ordinária. Não escutou eu falar, Decão? Desapareça com sua tropa! Vou chamar, se Seu Arlindo precisar.
- Pia só... Parece gente! – resmungou, mas obedeceu e saiu arrastando à Casa Velha sua corriola em andrajos fétidos.
Entraram, Seu Arlindo e Dona Rute, felizes, em casa. Avisei que ia colher cajá e fazer mangusta e se eles queriam dar alguma ordem - falei acentuando os bemóis e sustenidos da voz branca com a qual, na ocasião, eu falava. Não queriam nada. Ah! Seu Arlindo queria que eu dissesse a Decão que só ia precisar dele pela tardinha para repassar os detalhes da queimada.
Eu estava verdadeiramente feliz! Considerei importantíssima a ocasião: dei uma carreirinha à casa do Major, presenteei-lhe com uma arupemba cheia de cajá e cajarama maduras, amarelinhas e cheirosas. Pedi se podia me arrumar gelo, pois, a ocasião era especial: dona Rute havia voltado para casa! Geladeira era ainda objeto raro na caatinga, além de ainda não ter eletricidade. O Major possuía gerador próprio, que ele mesmo construiu - aprendera no Exército.
Aqui agora posso revelar tudo: fui casa do Major apenas ler a cara dele. A arupemba cheia de cajás e cajaranas foi o pretexto.
Outra vez, Decão e os toscos. Armados com tochas acesas, correndo por todos os cantos, entre os garranchos tostados, o sol fumegante da tarde quente... Os arigós pareciam um bando de demônios raiventos incendiando a terra! O terral em súpetos rodopios revolvia labaredas de fogo até perto das nuvens como se a tudo fosse derreter!
No leito arenoso do rio que se perdeu, secou e depois morreu, Dona Rute, em seu sempre vestido godê e longos cabelos de graúna, finalmente brincava com o tão esperado filho. Tão vivaz dentro da roupinha de marinheiro, sorridente, branquinho feito leite, cachinhos claros e olhinhos verdes, azuis - coloridos - como duas bilas!
Seu Arlindo subia, perdendo-se na curvinha da Pedra Azul. Ia à cidade, feliz da vida, exibir pose de pequeno fazendeiro e sua mais nova aquisição: um automóvel, um jipe verde, fruto das pedras que vendia à Ditadura Militar; pedras que viravam brita para construir estradas. As boas safras, as grandes roças e alugueis de pasto?... Decaíam! A terra tornava-se cada vez mais estéril. Aridez por todos os cantos da Icozeiro. Desmatar é o fim final, derradeiro, acaba com tudo. Mesmo na alegria da aquisição de automóvel e eletrodomésticos, Seu Arlindo ruminava a ciência de ter cometido um erro irreversível. Escondia-se numa alegria salobra. Sumiu na curvinha da Pedra Azul, deixando atrás de si a nuvem de poeira.
Quando a negrinha Dila, moradora do Major, não me estava atrapalhando o pensamento, eu mergulhava e retornava à grande queimada, que transformou o paraíso no inferno. Não me dava outra saída a não ser arribar. Casar-me com a Dila, me encher de filhos e me eternizar na miséria, eu não ia... Criar menino num deserto daquele, nem peixe, nem rio, sem caça, sem árvores... Era impossível conviver com o destino do Salgado que, antes de sumir, tornava-se um filete de água fervente e perdido num mar de areia fina e prata.
- Tu gosta muito d’eu? - Dila meio saliente, meio envergonhada, queria saber.
Eu só pensava na grande queimada. Codornizes, urubus e carcarás alçavam aos céus e atravessavam a cortina entre a morte e a vida. Tantas outras aves não se erigiam a tempo, tornavam-se ígneos e eclodiam em fagulhas rutilantes. O raro gavião-azul, inteiro sapecado, esfacelava-se no terreiro e debatia-se até arquejar num doloroso e derradeiro crocitar. O vento arrastava a nuvem de fumaça, e na chã a coral extenuava-se. Os anéis amarelos, vermelhos e pretos confundiam-se em carne viva, e a cobra lancinava em comiserado serpentear. Em símile condição, teiús, camaleões, intanhas... Em malta, preás, soins, maracajás e tatus – todos como raios caçando a salvação.
- Até que eu gosto, Dila, mas...
Amassei com o pé uma taioca que por ali passava solitária; a minha cara novamente enfiada no chão e o pensamento no passado distante: Decão no comando dos cassacos, cada um com seu facho: estopa ensopada no coité de querosene... Incendiavam a ponta da arma medieval e saíam em disparada circundando o aceiro e ateando fogo no tabuleiro, transformando-o numa fornalha só, a céu aberto.
- Mas o quê, Nuné?... - apreensiva, aos pés de mim, seu amado.
– Eu vou embora pra São Paulo com o Decão - disse eu.
- Vocês nunca foram amigos. Ele vai judiar de tu - disse.
Eu sempre pensava em Decão, sumido... Há quanto não o via? Desde a queimada. Apareceu de repente, de malas prontas para a Cidade Jardim, onde cuidava de pintos, da pintarada de João Uliana. Tratou longamente com meus donos; queria levar-me consigo. Não me opus, nem podia. É deixar para trás o pensamento de que sêmen e urina são a mesma coisa. A inocência ficou entre as labaredas gigantes que engoliram a Casa Velha e os pertences dos cabras toscos:
- Eu vou pra São Paulo e, com um pouco de sorte, encontro minha mãe. Quem sabe o Padin Ciço me ajuda, arrumo trabalho e fico rico?
- Fazer o quê, encontrar quem? – era o Major que chegava fortuito – tu não sabe nem assinar o nome direito… Ficar rico?! Só se for servindo de mulherzinha dentro do Carandiru. E tua mãe, aquela vadia que nunca soube fazer nada a não ser meter, aonde tu vai encontrar aquilo?...
O Major era tão duro! Ai que homem severo, bigodão preto hermeticamente aparado, cara de carrasco, olhar de gato maracajá, esgares de garanhão e fala de locutor. Gostava tanto do Major. Nunca falei a Seu Arlindo que ele andava se ‘deitano’ com Dona Rute dentro da moita grande.
O varzealegrense acelerou e partiu a despejar dois perdidos no Sudeste, eu e Decão, cheios de esperança. Acenamos para Dona Rute, Seu Arlindo, o pequeno de cabelo de fogo, o Major e Dila, que deixava rolar uma lágrima. Um estranhamento avassalador ao perceber que um ser no mundo era capaz de chorar por mim.




13 de agosto de 2016

Entrevista com João Carlos Pires Uliana



Pensei em fazer uma matéria com João Uliana. Ele, muito ocupado, precisando levar barras de ferro na Ninho Verde, ir em Laranjal comprar uma motosserra, vistoriar as obras na granja… Ofereci-me então para acompanhá-lo, e ele topou. Conversa longa, agradável, cheia de conteúdo franco. Disse-lhe que sou seu fã - e é verdade – e ele recebeu o elogia com bonomia e amicícia. É um grande ser humano, têm suas convicções e sabe delimitar seu espaço. Acredito que no dia em que Tietê conhecer João Uliana fá-lo-á prefeito e ou, no mínimo, líder vitalício. João representa bem o lado bom da bela Cidade Jardim.

Depois de rodarmos a tarde toda, senti estupenda trepidação e, sem pensar em política, perguntei:

- Na última vez que viemos aqui o carro não trepidava tanto. Fizemos outro trajeto ou é o mesmo? A estrada está horrível!

- Estamos fazendo o mesmo caminho. É que choveu demais e a água inundou tudo por duas vezes só este ano. Tá vendo aquela marca de lama no mato lá em cima?… Então, a enchente chegou lá. Tudo isso aqui ficou alagado, água de dar nado. 

João Uliana é pleno e transparente feito água cristalina, seja para concordar, seja para discordar. Quando eu e ele entramos na Ninho Verde, ele me transmitiu, sem abrir a boca ou mesmo falando de outros assuntos, estar tão sobrecarregado quanto Sísifo, diante da crueldade da crise nacional:

- Meu irmão precisou demitir quase um terço dos funcionários.




Pegamos a estrada para Laranjal e começamos a gravar. Li a primeira pergunta, e ele soltou a língua firme e afiada:

- Eu não pensava em ser vereador, prefeito… Nem vontade nem tempo. Haja vista as dificuldades que estou enfrentando para conciliar a campanha e minha vida profissional. A política é difícil de conciliar com qualquer coisa, sobretudo eu que não dependo da política para viver. Nem pretendo depender dela para sustentar minha família e meu padrão de vida. Quero depender do meu trabalho. A política é só um viés para eu ajudar os que precisam. Gosto de ajudar os outros. Talvez tenha herdado isso de meu pai. Tem muitos que entram na política para defender os próprios interesses, o que não é o meu caso. Quero ajudar, mas não são todos que pensam assim.

João Uliana fala com tanta convicção e naturalidade que é mais fácil acreditar numa mentira dele do que na verdade de muitos. Fiz mais uma pergunta. Ele inflou o peito e ergueu a voz:

- É tudo mentira, conversa fiada de quem quer colocar palavras na boca alheia. Não sou contra a Feirinha de artesanato. Sou contra a feirinha dentro do jardim. Os artesãos precisam de uma associação que os profissionalize. A praça é para o povo, e não para qualquer tipo de comércio ambulante. Então se faz uma praça linda, e deixam-na cheia de fios, os chamados gatos, para levar energia aos ambulantes, correndo o risco de eletrocutar as pessoas? Feche-se a Rua do Itaú para venda de artesanato e lazer. Não fecham a Paulista em São Paulo?… Mas fique tranqüilo. Meu pensamento será apenas um em nove, ou seja, em sendo eu eleito, serei apenas um vereador em nove. Não sou nem serei ditador nem vivo numa ditadura.

Antes que eu perguntasse sobre o Fábio Lanches, ele mesmo encarregou-se de falar:

- Esse Fábio é um esperto. Ele quer um comércio no melhor ponto da cidade, sem pagar IPTU, levando vantagem sobre quem paga impostos. Ele sequer se enquadra como ambulante, pois tem emprego fixo. Por que ele pode utilizar a Zona Azul durante 24 horas, sem pagar nada? Todos têm de respeitar a Zona Azul e pagar taxa e impostos, menos Fábio Lanches. Os funcionários dele têm carteira assinada? São maiores ou menores de idade? Vou entrar na Justiça para a Prefeitura ir lá e retirar ele de lá. Pouco me importante se a responsabilidade é da secretaria, da prefeitura ou do prefeito. O Fabio Lanches não é mais do que ninguém.

- Que nota você daria a sua passagem pela administração atual?

- Acho que seria um 8, apesar da grandes dificuldades financceiras. Mas a dificuldade maior é a judicialização de tudo. O juiz, por exemplo, manda comprar um medicamento caríssimo, sendo que a Prefeitura não tem recurso. Bati de frente com muita gente porque todo mundo quer levar seu quinhãozinho de vantagem da Prefeitura. Alguns acham que podem tudo, e não pode tudo. O dinheiro é limitado. As leis são paternalistas e não dão suporte para a Prefeitura prestar um bom serviço, além de alguns líderes estarem mais preocupados com o resultado político do que com os resultados reais de suas ações. Por isso resolvi entrar na política na tentativa de fazer leis que dêem suporte às ações sérias que resultam em benefícios reais para todos.




- Então a atual administração tem algo além de marketing? - perguntei.

- Sim, que se faça marketing sim. Desde que não seja absurdo como a compra de meios de comunicação. Não adianta nada fazer uma administração maravilhosa e não mostrar. Ademais só se faz marketing daquilo que se realiza. A administração atual fez muitas obras escondidas: ruas recapeadas, estações de tratamento de esgoto, a parte escolar… Hoje Tiete tem um projeto educacional, além da restauração e reforma de muitas escolas, creches, escolas rurais. A parte recreativa, todos os brinquedos trocados, postos de Saúde revitalizados, centro odontológico… Tem muita coisa pra mostrar, escolas novas no Altos do Tiete, Santa Maria e Emílio Gardenal. E tem a parte administrativa. É que as pessoas não vêem. Hoje tudo é licitado. Só no primeiro ano em que estive lá fiz mais de 60 licitações. A Santa Casa está com as contas em ordem, atende pessoas de toda região. Brigas de funcionários que deram prejuízos enormes à prefeitura. Um funcionário se embriagou no trabalho, e chamaram os guardas municipais. O gm deu uma gravata no bêbado para contê-lo. Isso resultou em um processo e a Prefeitura foi condenada a pagar 160 mil reais ao funcionário que se embriagou em serviço! 

- Entendo – disse eu; pausa.

- Tem de se votar em quem faz, em quem trabalha pelo coletivo independente de simpatizar ou não com o candidato. Para que trocar o certo pelo incerto? A Santa Casa ia fechar as portas e você vem me dizer que isso não é uma grande conquista? Em que pese uma ou outra reclamação, hoje tem muita gente elogiando a Santa Casa, que devia 20 milhões e agora deve apenas 4 milhões.  

- E sobre o Lago da Serra, por que tanto cenário, tanta propaganda, e nada de concreto acontece?

- Primeira eu queria dizer que tem uma classe política em Tietê, que embora você faça parte dela, é inexpressiva. Nada de concreto conseguem ou conquistam para a cidade. Sem querer desmerecer ninguém, mas que expressão política tem essa gente? Que contato tem com o governador? Esses dias o Alckmin estava aqui perto inaugurando obra, e não tinha ninguém, um vereador sequer, do grupo de vocês. Que contato tem essa gente com políticos para conseguirem benefícios políticos? Uma cidade como Tiete que depende de 70% de recursos externos ao município pode ser administrada por pessoas politicamente inexpressivas? Você já viu uma foto do seu candidato com o governador? Com o presidente, que é tieteense? O prefeito atual é sério, tem o dom de fazer política e, querendo ou não, tem feito política com muita competência.

Fiquei calado, e ele retornou ao assunto Lago da Serra:

- Tenho acompanhado mais distante do que gostaria. Mas você está enganado. A restauração está acontecendo e muito mais depressa do que você imagina. O emissário novo está sendo feito. As pessoas não sabem porque é subterrâneo, está no meio do mato, e as pessoas só acompanham os que os olhos vêem. Da Santa Cruz para cima, até passando o Grupo metal, já está tudo pronto. É uma obra grandiosa, que no tempo do meu pai demorou 4 anos. Foi feita com funcionários da Prefeitura, o que seria impossível hoje. Os tempos eram outros, os materiais eram diferentes, os funcionários e a arrecadação também eram diferentes. Espero que ali se realize um belo projeto paisagístico bem feito e definitivo. Infelizmente demora um pouco, mas está sendo feito, e bem feito! 

- Como você se apresentaria para os eleitores de fora que não conhecem a história da família Uliana?




- Não farei promessa de nada. Apenas apresentarei minha disposição de servir ao município, trabalhar com seriedade, honestidade e fazer política que não se atenha a partido político por força de lei. O que deve contar é o caráter das pessoas e a disposição de fazer a coisa certa. Sou uma pessoa que trabalha muito. Quero entrar na política para construir um legado assim como meu pai construiu. Tenho a preocupação de ser comparado a ele, porque Deus fez meu pai e jogou a forma fora. Mas eu não sou ele, impossível trabalhar como ele trabalhou; os tempos são outros. 

- Para que serve um vereador?

- A gente costuma dizer que não seve pra nada (risos). Sabe aquela picapinha igual a que eu tenho? A turma chama de vereador porque não pega carga pesada nem carrega gente (risos). Serve para fazer e reformular leis. E não para ficar requerendo por que a prefeitura pintou o banco da praça dessa ou daquela cor. 

- O que você pensa do casamento entre pessoas do mesmo sexo?

- Não acho que isso seja um assunto pertinente à Câmara Municipal.

- Um legislador não deve se preocupar com a sexualidade das pessoas? E as políticas públicas, adoção por casais do mesmo sexo…?

- Não sim lógico… Acho que cada um deve ser livre para fazer o que quiser da vida, desde que respeite o direito do outro, que não ofenda o próximo. O direito de um termina quando começa o do próximo. O respeito é a chave, o segredo para tudo na vida: um respeitar o pensamento do outro. A família moderna não se compõe apenas de casal homem e mulher. A configuração é outra, e o que conta mesmo é o caráter das pessoas. As leis mudam, o convívio social muda, e têm de mudar mesmo… Quem não se moderniza fica obsoleto, perdido no passado. E o legislador tem de estar antenado sim, a Justiça tem de estar antenada As mudanças. A cada 20 anos é uma geração nova, tempo suficiente para restaurar as leis, a conduta social. A vida é uma evolução constante e todos têm de modernizar-se. Quem não evolui fica para trás, um dia morre e deixar de existir. Isso vale para tudo: relações pessoais, empresas, funcionários, o pai de família, o presidente, a igreja... E que a sociedade evolua de modo que fique bom e confortável para todo mundo.




- João meu caro você é grande e cheio de conteúdo. O relato abaixo é baseado em uma fala atribuída a seu avô, o grande Zico Pires justamente para ilustrar as mudanças de costumes na sociedade.. Alguém teria perguntado a ele como era o homossexualismo nos anos 20. Ele teria respondido mais ou menos assim: “Não sei. Nunca encontrei ninguém que quisesse dar pra mim. Quando a gente ia casa, quando o rapaz ia se casar, o pai levava-o na casa de uma preta que morava na Beira-rio. Chegando lá, o marido da preta saía de casa. O rapaz, o pai e a preta se trancavam no quarto paupérrimo, despiam-se, e o rapaz ia aprender o que teria de fazer com a noiva na lua-de-mel. Em muitos casos o pai dirigia, ali mesmo na cama rústica, bem dizer um jirau, uma aula prática entre a preta e o mancebo. Uma vez, o pai de um amigo nosso, levou-o para o ritual de aprendizagem e iniciação. Nosso amigo, que era um encapetado, perguntou se podia, por segurança, fazer uma aula prática ali mesmo para que o pai lhe avaliasse o desempenho. O pai que era médico disse não, melhor não, para evitar doenças venéreas. O coitado do pai nem imagina que o filho já havia aprendido tudo sobre sexo transando com um tieteense que era ídolo nacional.

- Obrigado, João. Até a próxima.

- Isso tá fora de contexto...(risos).





















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