À beira do rio Salgado,
sobre o tronco da oiticica frondosa, eu mesmo construí meu canto. Cortei a
catingueira, fiz pilares, das varas de marmeleiro fiz o lastre atando umas às
outras com tiras de mutambeira. Com os pés enormes, de voz de branco, amassei o
barro até ficar visguento e, aos poucos, numa velha arupemba, conduzi-o, até
concluir inteiro o piso lisinho e amarelado. Teci as paredes com cipós e dei
uma demão de barro temperado com cinza da fogueira de São João. De pedaços de tábuas
rústicas e ordinárias, improvisei uma janela e uma portinhola de taramelas e
ferrolho que me garantiam a privacidade naquele mundinho minúsculo e suspenso
do chão.
Ali, enfunado, eu ficava
horas. Pela manhã, depois de soltar o gado na manga, as cabras e as ovelhas no
pasto, abastecer de água potável a casa do patrão, o bebedouro das vacas de
leite... Desarreava o jumento Virgulino - que tanto me ajudava, principalmente
no abastecimento de água - e dava-lhe o pasto. Cumpridas tais obrigações, ia eu
às devoções. Pegava a espingarda de dois canos e me socava dentro da Casa Alta
– assim denominaram meu esconderijo – a espera de veados galheiro ou emas que
viessem beber água – na verdade, quase lama - nas poças de água suja que ainda
restavam do Rio Salgado.
E sair de dentro da Casa
Alta eu só saía quando ouvia o grito do padrão – muitas vezes furioso -
avisando de apartar bezerros ou pastorear as cabras e ovelhas que furavam as
cercas e invadiam o milharal ou a roça do vizinho, ambas, muitas vezes, regadas
a pingos de água retirados do resto do rio em baldes ou latas vazias de
querosene. A plantação, como a reclamar água, pegava um aspecto esquisito e
macabro. Eu murmurava de mim para mim:
- Parece que se alimenta de
suor humano, o suor dos miseráveis que regam-na à mão, em gotímetro…
Antes de descobrir o prazer
do vicio solitário, eu armava arapucas e pegava três-potes e codornizes,
pescava várias espécies na ribança com o landuá e plantava na vazante:
cebolinha, coentro, uma e outra coisas. Minha patroa adorava!
Mas esse negócio que o povo
chama de punheta, acabou comigo, apesar de ser muito envolvente e prazeroso. O Major, nosso vizinho, quando vinha me
profanar – bater forte com o pênis na minha face - dizia que eu estava no fim
da voz branca, período em que se inicia a grande diferença entre macho e fêmea.
À minha frente estava a tal semenaca: interesse pelo sexo, mesmo que fosse o
dele;
nasceriam pêlos no peito, pernas, púbis e barba. A não ser que eu tivesse muito
sangue de índio. Os pés cresceriam, as mãos ficariam enormes e eu me
estabanaria até acostumar o novo corpo com o espaço; o pinto cresceria, os
testículos desceriam, eu sentiria muita fome e comeria até o barro das paredes;
engrossaria a voz, o cachaço e ficaria atormentado por não saber lidar com
tanto estranheza. Mas ele, o Major amigo, estava de olho em mim a me auxiliar
na transição impreterível de não ser nada: nem mais menino e ainda longe de ser
homem.
Certa vez, sem querer,
deparei-me com os patrões se amando, pela aurora, nas águas mornas do Salgado
sazonal. De tão inesperado, nem pude fugir. A implacidez estrebuchou-se-me
inteiro por dentro, e me petrificou. O jeito foi me fincar atrás da moita
pequena, à distância mínima, e adiar o meu banho de todas as manhãs; já eles
raro desciam ao rio assim tão cedo. Que situação... Eu fechava os olhos! Eu
arregalava os olhos!
Um calor estranho a me
queimar a cara, a me percorrer o corpo e me obrigar, mesmo correndo todos os
riscos, a manter todos os sentidos ligados, esmiuçando a cena avassaladora! Era
tão diferente dos animais! Bois e vacas, bodes e cabras, éguas e cavalos... Eu
nem batia a biela, mas meus patrões!... Que loucura!
A puerilidade, daí em
diante, tomou outro rumo: eles, meus donos, não me saíam do juízo! Eu afobado
cumpria as obrigações e corria à Casa Alta. Os veados galheiros e emas bailavam
nas minhas fuças! E era o casal, seu Arlindo e Dona Rute, que eu via e ouvia
inteiros em toda parte. Dona Rute toda bonitona, cheia de curvas, exibia-se
como uma serpente macia, lenta, embusteira e lasciva. Seu Arlindo recebia-a, em
pêlo, a gabar-se do pedúnculo afoito, rijo, a ostentar um bálano rosado, enorme,
como fosse a Esfera de Armilar.
Parecia que as falas
entrecortadas – passei a espioná-los pelas frestas - e as imagens que eu via
quando o candeeiro permanecia aceso, ficavam vivos dentro de mim. Era eu botar
os pés na Casa Alta e ver e ouvir tudo como se fosse a mais perfeita repetição
daquilo que eu assistia pelo buraco da fechadura, frestas e um buraco no
telhado de onde se via com perfeição durante o dia!
Ela, dona Rute, a Lindona -
assim seu Arlindo a chamava naquelas horas - queria ser mãe a qualquer custo.
Ele, o Lindão, como que despreocupado, desempenhava seu papel sem resignar-se.
Falavam sobre diversas
coisas, depois que desligavam o rádio e se trancavam na alcova. Uma noite,
falavam sobre mim. O candeeiro aceso, ela inteiramente nua, recostada a uma
pilha de travesseiros sobre a cama de colchão de mola, lençóis alvíssimos de
algodão, um livro nas mãos e entre as pernas a cabeça meio grisalha de seu
Arlindo, também em trajes de Adão, meio que de joelhos, ocupadíssimo entre
fazeres e falares que nem convém citar de tão picantes. Um mundo estranho e
novo a se me abrir:
- ... pelo menos aprender a
assinar o nome, Lindona!... Gostosa!
- Pra que botar um cabrinha
sarará daquele na escola? Vai pensar que pode ser doutor. Perda de tempo e
dinheiro. Ele fica no canto dele. A gente mesmo lhe ensina o abc e umas
continhas de somar e diminuir. Quando botar corpo de homem, arrumo uma negrinha
com o Major, e mando o casal morar no Serrote pra cuidar dos animais e daquelas
terras ignotas. Pretendo aumentar a criação, fazer umas brocas, plantar milho
que dá forragem.
- Tudo o que você quiser,
minha Lindona gostosa... Eu quero você todinha...
Eu não gostava da maneira
como dona Rute falava sobre mim, sentia-me um cão sarnento. Leão, o rei da
flatulência, eternamente cheio de pulga, carrapatos e sarna - nem ele era tão esculachado!
Muita vez me dava ódio de dona Rute... Ainda bem que eu mergulhava no Salgado e
passava! Ela sentia prazer em negar-me como semelhante ou mesmo como criado da
casa. Deveria nem ter me comprado a minha mãe. Bem feito que passasse a vida
tentando e não embuchasse! O que custava me criar como filho ou mesmo como
gente? Arrumar cama limpinha e cheirosa, acesso ao rádio, roupas decentes,
chinelos e sapatos novos e me adotar? Não custava nada! E era ela quem não
queria; desistira de me criar só porque eu sou sarará, nem branco nem preto...
O patrão não se importava tanto. Inclusive ele nunca se oponha a ela em nada.
Em nada! Devia me defender, dizer que eu não tinha culpa de ser como sou, de
não ter pai... Alías, pai eu tenho. Só que não se sabe quem é, mas existe
grande desconfiança. É que minha mãe era mulher dama, mulher de cabaré...
Dormia com muitos homens diferentes todas as noites. Dormiu até com o amásio da
cafetina, e botou tudo a perder: com a carabina nas fuças, foi expulsa do
bordel! Tanto homem e minha mãe foi se interessar logo por quem? Para não
morrer, agarrou-me pelo braço e saiu me arrastando. Fugiu com um grupo de
retirantes. Passando por aqui, na fazenda Icozeiro, me vendeu por uns vinténs,
umas e outras besteirinhas. Eu fiquei, pois era o objeto vendido; e ela se foi com
o dinheiro sabe lá Deus pra onde!
Então, capaz que eu fosse
filho de militar; alias, militar, militar, assim com o Major, não! Mas era
quase polícia, era guarda da Prefeitura e autorizado pelo Dr. Gato! E era
valente e respeitado. Não portava revólver, mas andava de cassetete e outras
tralhas de autoridade! Tinha permissão para bater em putas, como minha mãe;
retirantes, cachaceiros e pederastas. Eu morria de alegria quando a gente se
encontrava! Ele me dava algum tostão para eu comprar doce ou dindin. Com fé em
Deus ele há de ser meu pai... Essas coisas de paternidade a gente sente no
espírito; eu queria ser filho dele, ele queria ser meu pai; pronto, tava tudo
certo. De quando em quando ele prometia me levar para morar na casa dele.
Um dia morri de orgulho de
meu pai soldado Santão - ai de quem negasse a autoridade dele! Ele batia firme
num retirante e cobrava a patente:
- Me chama de soldado
Santão, seu retirante dos infernos!
Quando fugimos, eu e minha
mãe... Quando ela resolveu se livrar de mim e me vender... Eu era muito
pequeno, mais me lembro bem: o saco encardido conduzido às costas, num ímpeto
brusco, foi jogado ao chão. Minha mãe foi desembrulhando, desatando o nó; com
as duas mãos, mantinha-o aberto, enquanto recebia o que lhe era de direito. Uns
quartilhos de farinha, umas rapaduras, uma quartinha com tampa, um dinheiro em
cédula, e umas moedas barulhentas - era tudo o que eu valia!
Depois dona Rute
presenteou-a com objetos que não serviam mais: um pente grande azul banguelo,
um par de chinelos roído no calcanhar, uns trapos velhos e sei lá mais o quê.
Quando, por fim, me dei
conta da situação, meti-me no desespero, mas não teve jeito: seu Arlindo me
arrancava dos braços do retirante esquelético que me conduzia! Não gosto nem de
lembrar o momento em que deram as costas e se foram lentos em passos lentos,
passo de retirante que, por não saber aonde vai, caminha sem vontade.
Largaram-me ali, no terreiro, nos braços de um estranho, como se eu fosse um
fardo inútil, pesado e descartável. Cruz credo! Não posso nem lembrar... Até hoje,
ainda não vivi terror igual, mas
sobrevivi.
No começo, quando dona Rute
desejava me adotar, a situação era até boa. Tinha tudo que precisava, e a
relação patrão/criado não era das piores. Dona Rute é que era instável. Quando
nos cascos, meu Deus, era um terror. Eu nem ligava muito para o que ela fazia
ou falava; nem chorei quando lhe quebrei o espelho gigante e ela me aplicou
tabefes e, em seguida, no calor da ira, uma surra de cipó de marmeleiro! Bateu
bateu, cansou, saciou-se e parou. Apenas lancei-lhe olhos súplices, e, quando
ela soltou um estalido de resignação e deu uma rabiçaca, cobri-lhe as costas (inundei-lhe
a alma) com olhares enfarados e agouros terríveis. Sobressaltei-me e mergulhei em profunda
vergonha com o grito do Seu Arlindo:
- Veja se daqui pra diante
presta mais atenção nas coisas. Parece que anda bebendo cana.
Pela primeira vez na vida eu
sentia a dor da vergonha, uma dor profunda. Eu quase um homem – uns pêlos
pingados irrompiam entre o pênis e o umbigo - e apanhando de cipó, e ainda
pior: cipó manuseado por uma mulher! Felizmente
Seu Arlindo não esquentava a
cabeça, estava sempre de bem com a vida principalmente se estava lambendo a
dona Rute, amassando-a e pinoteando em cima dela feito jumento inteiro em
várzea de campos gerais. Sem aprofundar muito, pode-se dizer que é um espírito
medíocre que tenta se redimir em ações frívolas. Não recolhia o sorriso fácil
do rosto, nem as palavras simplórias da boca, desde que não lhe escasseasse o
sexo de todo dia. Jamais foi abertamente solidário com a minha dor física ou
moral. Achava normal, sobretudo se na presença de Dona Rute, eu apanhar de cipó
e ser esmurrado por ela:
- Todo cuidado é pouco com
as coisas de Rute.
Cheirinho de chuva, alta
manhã, e fui à Casa Alta. Enfiei a mão instintivamente dentro da calça de
suspensório, Dona Rute e Seu Arlindo a me causar repelões nos músculos. Botei-me
num ritual novo por que pensar, eu não pensava em nada, a não ser fosse a
dicotomia do abridor e seguidor de caminhos: uns apenas seguem caminhos, outros
abrem caminhos.
Saquei o pinto e... Um
pintinho de nada, duas, três polegadas no máximo... Merrequinha que eu pegava,
acariciava, amassava, puxava, sovava... E não me cansava de repetir. Cada vez
mais excruciava, alucinava... Devastador! E se explodisse? Prossegui até que
explodiu!
– Meu Deus, que delícia...
Até me mijei todo! - disse de mim para mim.
Quando olhei pela janelinha,
uma família de veados galheiros me insultava, ali, na minha frente, no areão prateado
do Salgado. Peguei a espingarda de dois canos, segurei firme e apertei o
gatilho. Um veado grande ficou no chão e um filhote fugiu feito um raio, mas
capengando. Soltei e açulei Leão, que em poucos minutos voltou com o veadinho
entre os dentes. Gritei Seu Arlindo para que me ajudasse na condução do
galheiro enorme, morto, além de minha força infante.
Veio correndo e atrás dele
um sujeito servil, espalhafatoso, que se fazia mais íntimo dos patrões do que
realmente era. Eu ali morava havia anos e o desconhecia completamente. Sujeito
estranho, meio abaitolado... Não me desceu bem. Já na primeira olhada que a ele
lancei, senti-o como a invadir-me. Botou os olhos fundos dentro dos meus, um
meio sorriso torto na cara tosca, mostrou a porcaria de um dente de ouro e
perguntou sibilante, como a me detrair:
- Quem é o cabrocha,
compadre Arlindo?
- É Nuné, um menino que
comprei de Dada Dadeira... Dizem que é filho do guardinha Santão.
- Isso é nome de gente! -
exclamou e encheu o entorno com uma risadona de deboche.
Morri de vontade de
atropelar a conversa sinistra e perguntar quem era o bode velho, mas o
enfrentamento sempre ficava só na intenção. Nunca vi uma cara humana tão
parecida com a de um pai de chiqueiro!
Não demorou muito para eu
descobrir do que se tratava. Seu Arlindo contratava o sujeito, Decão, para
fazer uma broca, derrubar a mata, fazer roças e pastagem para os animais e,
também, para pegar dinheiro no Banco do Brasil, incentivo do Governo Militar.
Tudo acertado, e iniciar-se-ia a derrubada logo após o São Pedro. Não viria
chuva pelos próximos meses, e logo os ramos verdes virariam folhas secas, boa
para a grande queima. Até os tocos derreteriam, e o trabalho de arrancar os
troncos com chibanca se reduziria a quase nada.
O cervo àquela altura da
conversa, que ocorria como se eu não existisse, já inteiro descourado! Decão a
mostrar o ouro da boca podre:
- Se fosse bode era só fazer
uma buchada!
Sangue e vísceras por toda
parte. Quem ia fazer buchada de veado? O veadinho pequeno jazia dentro do bucho
grande de Leão, que observava tudo de um canto do terreiro, debaixo da sombra
da catingueira grande. Eu quieto a receber os esgares de Decão, que de quando
em vez, virava-me a cara bajuladora.
Quando na presença de gente,
eu fazia o que me pediam; como nada me pediam, atinha-me a ouvir e avaliar os
planos do patrão. Este falava alto, distribuía ordens à esposa, ao fubano do
Decão e nada a mim. Talvez para anular meus merecimentos diante do feito, pois
agia como se ele tivesse caçado:
- Apesar da seca, ainda tem
muita caça nas minhas terras!
Pronta a combinação sobre a
broca entre o patrão e o cabra Decão. Seu Arlindo passou a faca partindo o
veado ao meio. Uma banda entregou a Dona Rute e a outra depositou dentro de um
bornal de palha e presenteou Decão! Este me buscou com o canto dos olhos lá
debaixo do poleiro das galinhas, onde eu colhia uma embira, e soltou o sorriso
emblemático que foi morrer no canto da boca torta, abaixo do bigode preto,
espesso e mal aparado. Sempre me mostrava o tal sorriso de modo sorrateiro,
escondido de seu Arlindo e dona Rute.
- Então o Compadre e a
Comadre compraram o filho de Santão?…
Decão ria solto, alto e
soltava um sibilo como se fosse um trejeito involuntário, um sestro abemolado
na voz, que assustava. Não fui com a cara de Decão. Nem escondi a alegria,
quando chegou a hora dele partir.
Agradeceu o presente,
atando-o à sela coberta por um coxim multicolor, disse saudações, montou no
pangaré, que levantou poeira rala - nada que lembrasse o alazão de Seu Arlindo.
Nem preciso dizer que fui ignorado por Decão; se me olhou de esguelha, não
percebi.
Passaram-se uns dias.
Tarefas concluídas. Tardinha. Seu Arlindo e dona Rute à missa. Eu inteiro absorto
no ritual “estica e puxa”, na Casa Alta. Esperava a noitinha de domingo chegar
e ir me lascar no rio, jantar e cair na rede. O quarto onde eu dormia, contíguo
ao do casal, que quase me adotara, parecia uma caixa acústica dos sons
produzidos na casa! O barulho da cama de colchão de mola, meu Deus!... Eu não dormia direito.
Dei um breve descanso à
timba, como se diz por aí, e joguei os lânguidos e míopes olhos na estrada. Foi
um susto só: saíam detrás da Pedra Azul, na curvinha, um pouquinho antes da
descida, cinco homens, dez homens, dezenas de homens mulambetos, trazendo às
costas, em trouxas encardidas, seus poucos pertences: roupas, a rede de dormir
e ferramentas: machados, picaretas, foices, rastelos, facões, lavancas e tantos
outros cacarecos. “Gentalha retirante!” – pensei alto, imitando Dona Rute nos
seus dias de nervo.
À frente da multidão andante,
que lembrava um bando de cangaceiros dos cordéis, o Decão no pangaré cardão. Ia
começar o desmatamento da Icozeira!
- Cadê teu patrão, Nuné? –
mostrou o dente de ouro e amassou o sexo como se desejasse destacar aquela
parte do corpão de chimpanzé.
-Tá pra cidade, na missa...
-Tu tá branco feito
algodão... Tava sovano a trouxa?! – disse Decão arreganhando a boca, fazendo o
bando (parecia uns bandoleiros, cangaceiros) se rir de mim.
- Não senhor... Faço essas
coisas não...
- Faz não, né?!... Tu é
sonso, hen?... Teu pai já deixou a mania de ser polícia?
- Sei não senhor...
- Teu pai é um safado. Só
presta pra bater em puta, nos bêbados arruaceiros, nos coitados dos retirantes
e estuprar viadinhos que nem tu...
- Sou isso não, senhor...
- Nun é não né?… Eu bebi
umas cachaça lá no bordel onde tu nasceu... Ele veio então fazer graça
comigo... Saimo na mão e eu acabei perdendo... Levei uma surra... Aproveitou de
mim... Eu tinha bebido demais... Mas a gente vai se falano, viu!... Avise pro Seu
Arlindo que eu já tô arranchado na Casa Velho...
- Aviso.
E os desdentados,
despenteados, quase vivos, quase mortos emendaram no deboche... Fiquei parado,
com a cara no chão, e a cáfila (sem ofensa aos camelos) passou puxada por
Decão. Sujeitinho tinhoso! Vai acabar levando outra surra de meu pai Santão. Se
não, faço melhor, peço ao Major que mande dar um tiro na moleira de Decão. Ele
que não me deixe em paz!... O Major é valente, trabalhou na polícia paulista, é
temido e mata só pra ver o tombo do cabra, e é meu amigo.
Feito estatua de cera, vi
Decão e sua corriola atravessarem o rio e se alojarem na Casa Velha, até então
usada como depósito de todos as tralhas, e, agora, trastes! Em tempo não muito
distante dona Rute queria que eu ali morasse, mas Seu Arlindo achou melhor não,
preferiu que eu continuasse morando com eles, na casa rica, rede limpa, lençol
terso, rádio e comida boa.
- A casa é tão grande e tão
vazia.
E eu ajudava bastante: pegar
uma água na cozinha, quando eles descansavam na rede grande, debaixo de um dos
alpendres; atiçar o fogão de lenha, preparar um escalda-pés, escolher um côco
no coqueiro, colher e assar um milho fresquinho, fazer um mandado qualquer. Foi
o que me salvou; por pouco escapei de ir parar na casa de cacarecos. Ademais eu
morria de medo de lobisomem, saci, caipora, alma penada... Eu teria morrido de
medo!
Apesar da desmata ter
começado pelos confins da Icozeiro, lá no Serrote, a gritaria das ferramentas
toscas longinquamente se ia aproximando a cada dia; sorrateira, se aproximava.
Mas antes do bate-bate
ensurdecedor imperar, fui brutal surpreendido e descoberto dentro da Casa Alta.
A taramela voou longe; um soco na portinhola, e o palavreado atrevido e
arrastado de Decão:
- O que tu ta fazeno aí,
moleque safado?!
Não tive tempo nem de fazer
cara de santo ou um olhar inocente que tentasse negar em silêncio, já que falar
era impossível. Eu mal conseguia acreditar em tamanha invasão; tremelicante,
perplexo, e pinto duro – agora já bem avantajado - e espumante na mão!
Um fuleiro invasivo dentro
do meu esconderijo, depois de ter arrombado a porta! Queria eu ter a coragem de
um retirantizinho do meu tamanho que, armando de punhal, enfrentou um homem
feito. Mas tal petulância ainda não era tudo: Decão arrancou de dentro da calça
o pênis fedido, repugnante, enorme, cabeçudo, meio encapado, cheio de esmegma e
disse:
- Pega, bate e balança
gostoso ou eu conto tudo pro compadre Arlindo. Vai depressa, viadim fuleiro!
- Gosto disso não, Decão –
disse eu como última tentativa.
- Eu sabia que tu não
prestava, chibungo safado... Conheço bosta só em olhar, de longe... Vai! Pega, coloca
na boca!
Parecia que o mundo ia
acabar. Desviei matreiramente e não entrei em casa. Uma gritaria, uma baixaria
como eu nunca tinha visto! Escondi-me atrás do chiqueiro de engodar porcos, e,
esgueirava-me à cena: dona Rute furiosa chorava e dizia que Seu Arlindo não a
merecia, que ela ia embora e ia separar-se dele para sempre. Onde já viu
desconfiar dela com o Major? Ela seria então uma mulher capaz de trair?! Ela,
mulher direita, honesta, ser capaz de trair na concepção do próprio marido que
ela amava tanto. Não, tal humilhação, tão grotesca desconfiança, ela não
aceitaria.
Seu Arlindo, aos berros,
selando o cavalo, dizia que ela, traidora, fosse aos quintos dos infernos!
Montou no alazão e saiu em disparada, cavalo às esporas, deixando atrás de si
densa nuvem de poeira. Nunca tinha visto Seu Arlindo daquele jeito! Vermelho de
raiva, pisando firme, como se rompesse um pavimento de ferro a cada passo e em
seguida cutucando o alazão e abrindo o poeirão! Furioso.
Que estaria acontecendo, meu
Deus?! Ela juntou malas, sacolas e baús e enchia-os de coisas e roupas.
Vestiu-se, abriu a sombrinha, leque à mão e botou-se na estrada. Pouco ligava
para os “não vá, dona Rute” que eu tartamudeava. Soluçava, caminhava,
descaminhava, tresvariada a me dar ordens:
-Vá à casa do Major e diga a
ele que mande alguém pegar minhas coisas e levar tudo à casa de mamãe – quase
cuspia fogo - e mande o teu protetor pagar o frete! – quando ela vociferava
esse temo é porque a coisa estava mesmo complicada.
Fui. Ordens recebidas,
ordens cumpridas. Ainda mais de Dona Rute! Um capanga do Major encheu o carro e
saiu fazendo poeira fina na estrada caatingueira.
Mais tarde, com a noitinha, Seu
Arlindo se aproximou, deu um milhão de ordens e o cavalo para eu retirar os
arreios, banhar e soltar no pasto. Não fez janta, dormiu no alpendre; passou a
viver do próprio veneno, como serpente. Já bem alta noite, fiz-lhe um café e
ele começou com macaxeira cozida.
Eu me virava como podia.
Quase sempre filava a bóia no acampamento de Decão. Uns e outros me ensinavam
coisas de saber, já que não tinha mais lições com a Dona Rute que, mesmo severa,
ensina com maestria e prazer.
O matagal inteiro no chão!
Tudo reduzido a uma imensa coivara de toras, gravetos e folhas a secar rápido
sob o sol do verão sertanejo. Seu Arlindo definhava a olhos nus, dona Rute
também, na casa dos pais. Um homem esquisito, que aparecia de quando em quando;
trancavam-se os dois ou saiam sem rumo a sondar coisa nenhuma; o esquisito
recebia dinheiro e ordem de Seu Arlindo:
- Se pegar juntos, apague os
dois! Tem testado o parabelo?
- Sim, sempre preparado para
a paz – riu-se e falou coisas estranhas – ‘se queres a paz, prepara-te para a
guerra’.
Eu tinha certeza que o Seu
Arlindo o contratara para matar o Major e Dona Rute, caso fossem flagrados
relaxação.
Fora isso, tudo corria
dentro da normalidade. Decão me achava em qualquer esconderijo que eu me
metesse e me fazia de ‘mulherzinha’ dele. Mas logo descobri que ele não me
atacava entre os cassacos, muito menos se eu estivesse acompanhado de Seu
Arlindo. Tornei-me o ser mais sociável do mundo: ou eu estava entre os peões
tocando tarol e cantando ‘para lavar a roupa’, ou estava grudado no calcanhar
de Seu Arlindo. Muita vez eu encarava, insultava ou ameaçava denunciar Decão,
cabrão enxerido... Onde já viu comer ‘os outros’ na marra? Ele que se metesse!
Apesar de encará-lo, eu não tinha coragem. Mas Decão não sabia de minha
covardia, ou saberia?
As festas de fim de ano se
aproximavam, e a hora da grande queimada também. Feito soim amalucado, eu entre
Seu Arlindo e Dona Rute. A esta eu dizia ‘volta pra casa, dona Rute, se não Seu
Arlindo vai morrer de tristeza’... E ouvia um ‘ele que morra’. Mas recado desaforado,
eu não transmitia. Para Seu Arlindo eu dizia um ‘vai lá pedir perdão a ela, Seu
Arlindo. Onde já se viu duvidar da honestidade de dona Rute?... O senhor foi o
culpado de tudo'... E ouvia um ‘tu não sabe de nada, cala a boca e cai fora...
Ela que volte com as próprias pernas. Não soube ir? Sabe voltar, se quiser’.
Recado orgulhoso eu não levava. E ia levando a vida de cupido.
Os preparativos chegavam ao
fim e a grande queimada ia acontecer brevemente. Todos os aceiros limpos e varridos,
decididos os pontos e as coivaras estratégicos, achas com estopa na ponta a ser
encharcadas em querosene e acesas... E, então, transportadas pelos cassacos que,
numa operação rápida e simultânea, ateariam fogo em quase toda a Icozeiro
desmatada. Os rebanhos já protegidos no Jati, sítio do Major pivô da briga de Seu
Arlindo e Dona Rute.
O militar já de vetustez do
lobo, mas não era de se jogar fora: inteiro, bonitão, aposentaria gorda e muito
prestígio. Mesmo assim, Seu Arlindo só podia ter surtado, ou teria flagrado
alguma travessura? Certamente não sabia da história inteira, nem tinha vista o
que eu vi certa vez.
Dia de reunião dos toscos. Dezenas
de homens no terreiro pilheriando sobre acertos e desacertos da grande
queimada. Do nada, quando desviava a cara das mugangas de Decão, vi uma sombrinha
apontando lá na curvinha da Pedra Azul. Não, não podia ser! Podia sim! Entrei
numa felicidade doida. Gritei e saí em disparada:
- Seu Arlindo... Seu
Arlindo... Corre! Corre, Seu Arlindo, vamos encontrar Dona Rute. Ela tá vindo,
tá voltando, Seu Arlindo... – e ele me ia seguindo, de mãos espalmadas, meio
levantadas, inocente, puro, como quem fosse se encontrar com Deus!
Fiz de conta que não percebia
o tolaz na face de dona Rute. Fui logo lhe tomando a bolsa, a sombrinha e
botando os dois frente a frente. Desci e subi algumas ladeirinhas, parei e
olhei para trás: os dois já estavam agarrados, se beijando no meio da ladeira
grande! Fiquei ainda mais feliz. Disparei a correr e num segundo cheguei em
casa. Tive uma atitude de enfretamento ante o gaiato Decão:
- Vai embora, Decão! E leve
seus cassacos, capangas ou sei lá o quê! Vamos! Sumam daqui, sub-raça
ordinária. Não escutou eu falar, Decão? Desapareça com sua tropa! Vou chamar,
se Seu Arlindo precisar.
- Pia só... Parece gente! –
resmungou, mas obedeceu e saiu arrastando à Casa Velha sua corriola em andrajos
fétidos.
Entraram, Seu Arlindo e Dona
Rute, felizes, em casa. Avisei que ia colher cajá e fazer mangusta e se eles
queriam dar alguma ordem - falei acentuando os bemóis e sustenidos da voz
branca com a qual, na ocasião, eu falava. Não queriam nada. Ah! Seu Arlindo
queria que eu dissesse a Decão que só ia precisar dele pela tardinha para
repassar os detalhes da queimada.
Eu estava verdadeiramente feliz!
Considerei importantíssima a ocasião: dei uma carreirinha à casa do Major,
presenteei-lhe com uma arupemba cheia de cajá e cajarama maduras, amarelinhas e
cheirosas. Pedi se podia me arrumar gelo, pois, a ocasião era especial: dona
Rute havia voltado para casa! Geladeira era ainda objeto raro na caatinga, além
de ainda não ter eletricidade. O Major possuía gerador próprio, que ele mesmo construiu
- aprendera no Exército.
Aqui agora posso revelar
tudo: fui casa do Major apenas ler a cara dele. A arupemba cheia de cajás e
cajaranas foi o pretexto.
Outra vez, Decão e os
toscos. Armados com tochas acesas, correndo por todos os cantos, entre os
garranchos tostados, o sol fumegante da tarde quente... Os arigós pareciam um
bando de demônios raiventos incendiando a terra! O terral em súpetos rodopios
revolvia labaredas de fogo até perto das nuvens como se a tudo fosse derreter!
No leito arenoso do rio que
se perdeu, secou e depois morreu, Dona Rute, em seu sempre vestido godê e
longos cabelos de graúna, finalmente brincava com o tão esperado filho. Tão
vivaz dentro da roupinha de marinheiro, sorridente, branquinho feito leite,
cachinhos claros e olhinhos verdes, azuis - coloridos - como duas bilas!
Seu Arlindo subia,
perdendo-se na curvinha da Pedra Azul. Ia à cidade, feliz da vida, exibir pose
de pequeno fazendeiro e sua mais nova aquisição: um automóvel, um jipe verde,
fruto das pedras que vendia à Ditadura Militar; pedras que viravam brita para
construir estradas. As boas safras, as grandes roças e alugueis de pasto?...
Decaíam! A terra tornava-se cada vez mais estéril. Aridez por todos os cantos
da Icozeiro. Desmatar é o fim final, derradeiro, acaba com tudo. Mesmo na
alegria da aquisição de automóvel e eletrodomésticos, Seu Arlindo ruminava a
ciência de ter cometido um erro irreversível. Escondia-se numa alegria salobra.
Sumiu na curvinha da Pedra Azul, deixando atrás de si a nuvem de poeira.
Quando a negrinha Dila,
moradora do Major, não me estava atrapalhando o pensamento, eu mergulhava e
retornava à grande queimada, que transformou o paraíso no inferno. Não me dava
outra saída a não ser arribar. Casar-me com a Dila, me encher de filhos e me
eternizar na miséria, eu não ia... Criar menino num deserto daquele, nem peixe,
nem rio, sem caça, sem árvores... Era impossível conviver com o destino do Salgado
que, antes de sumir, tornava-se um filete de água fervente e perdido num mar de
areia fina e prata.
- Tu gosta muito d’eu? -
Dila meio saliente, meio envergonhada, queria saber.
Eu só pensava na grande
queimada. Codornizes, urubus e carcarás alçavam aos céus e atravessavam a
cortina entre a morte e a vida. Tantas outras aves não se erigiam a tempo,
tornavam-se ígneos e eclodiam em fagulhas rutilantes. O raro gavião-azul,
inteiro sapecado, esfacelava-se no terreiro e debatia-se até arquejar num
doloroso e derradeiro crocitar. O vento arrastava a nuvem de fumaça, e na chã a
coral extenuava-se. Os anéis amarelos, vermelhos e pretos confundiam-se em
carne viva, e a cobra lancinava em comiserado serpentear. Em símile condição,
teiús, camaleões, intanhas... Em malta, preás, soins, maracajás e tatus – todos
como raios caçando a salvação.
- Até que eu gosto, Dila,
mas...
Amassei com o pé uma taioca
que por ali passava solitária; a minha cara novamente enfiada no chão e o
pensamento no passado distante: Decão no comando dos cassacos, cada um com seu
facho: estopa ensopada no coité de querosene... Incendiavam a ponta da arma
medieval e saíam em disparada circundando o aceiro e ateando fogo no tabuleiro,
transformando-o numa fornalha só, a céu aberto.
- Mas o quê, Nuné?... -
apreensiva, aos pés de mim, seu amado.
– Eu vou embora pra São
Paulo com o Decão - disse eu.
- Vocês nunca foram amigos.
Ele vai judiar de tu - disse.
Eu sempre pensava em Decão,
sumido... Há quanto não o via? Desde a queimada. Apareceu de repente, de malas
prontas para a Cidade Jardim, onde cuidava de pintos, da pintarada de João
Uliana. Tratou longamente com meus donos; queria levar-me consigo. Não me opus,
nem podia. É deixar para trás o pensamento de que sêmen e urina são a mesma
coisa. A inocência ficou entre as labaredas gigantes que engoliram a Casa Velha
e os pertences dos cabras toscos:
- Eu vou pra São Paulo e,
com um pouco de sorte, encontro minha mãe. Quem sabe o Padin Ciço me ajuda,
arrumo trabalho e fico rico?
- Fazer o quê, encontrar
quem? – era o Major que chegava fortuito – tu não sabe nem assinar o nome
direito… Ficar rico?! Só se for servindo de mulherzinha dentro do Carandiru. E
tua mãe, aquela vadia que nunca soube fazer nada a não ser meter, aonde tu vai
encontrar aquilo?...
O Major era tão duro! Ai que
homem severo, bigodão preto hermeticamente aparado, cara de carrasco, olhar de
gato maracajá, esgares de garanhão e fala de locutor. Gostava tanto do Major.
Nunca falei a Seu Arlindo que ele andava se ‘deitano’ com Dona Rute dentro da
moita grande.
O varzealegrense acelerou e partiu
a despejar dois perdidos no Sudeste, eu e Decão, cheios de esperança. Acenamos
para Dona Rute, Seu Arlindo, o pequeno de cabelo de fogo, o Major e Dila, que
deixava rolar uma lágrima. Um estranhamento avassalador ao perceber que um ser
no mundo era capaz de chorar por mim.